Poemas



APRENDIZADO
para meu pai

Caiu no mar tem que nadar
murmurava meu pai marinheiro
tirando um bagre do anzol
um cigarro do bolso traseiro

Eu, sabedor de nada,
azeitava o eixo do sol
sonhando um dia conquistar
o meu lugar à sombra

E o mar era tão grande!
E a minha imaginação, tamanha,
quebrava além da arrebentação
no redemoinho de uma música estranha

Anda moleque, recolhe a rede
carrega o peixe pra tua mãe cozinhar
Era o pai me fisgando com o olhar

E eu seguia suas pegadas
pelos caminhos de areia
ouvindo as ondas a murmurar
como o canto de uma sereia:

Caiu no mar tem que nadar...
Caiu no mar tem que nadar...

                                               de O pó das palavras


ODE AO VENTO

O vento que ara teus cabelos com frescas memórias
é o mesmo que ainda ontem expulsou Eva do paraíso
castigou as estepes russas com chuvas de granizo
soprou vozes de encanto aos jovens sem juízo
lambeu o sal dos corpos nas praias contemporâneas
arrancou árvores na Amazônia, pontes na Pensilvânia e telhados nas Antilhas
construiu paisagens férteis com as areias dos desertos
arrastou navios de piche por destinos incertos
estalou na Ringstrasse o cangote de Nietzsche com o frio chicote de Lou Salomé
moveu Dom Quixote através dos moinhos
percorreu ruas e rios e marés
tangeu nuvens acima das montanhas.
Sempre o mesmo vento, quente ou gelado,
entrando e saindo pelos mesmos buracos, renascendo pelas entranhas,
esse vento tão rente e tão remoto
que como um pente acaricia teus cabelos
enquanto por puro capricho
maltrata meu olho com um maldito cisco. 
      
                                      de O pó das palavras

AO MESTRE JORGE DE LIMA

Por quantos séculos
ainda teremos que escrever versos afoitos
em noites famintas
à beira do fracasso
meu grande poeta Jorge de Lima?
E essas estradas múltiplas da existência
serão labirintos para Deus?
Estou triste hoje, meu poeta e médico das Alagoas,
vi meninos doentes como teus doentes meninos
da lagoa Mundaú.
Mas como vão os desvarios da natureza
meu poeta predileto
as águas de teus poemas idílicos
lavando paisagens bíblicas?
E a Louca, andará ainda na tempestade?
E a musa, meu bom amigo poeta,
estará repousando nas folhagens, nas nuvens,
no fundo do mar?
E os jovens, meu velho,
os jovens que hoje falam de mais
amanhã falarão de menos?
E eu, querido poeta meu,
porque me faço tantas perguntas???

                                      de Borboletas não dão lucro


ESCREVA SUA HISTÓRIA

Escreva sua história
na areia da praia
para que as ondas a levem
através dos sete mares
até tornar-se lenda
na boca de estrelas cadentes.
Conte sua história ao vento
cante-a nos bares
para os rudes marujos
olhos de faróis sujos.
Escreva no asfalto, com sangue,
grite bem alto a sua história
antes que ela seja varrida
na manhã seguinte
pelos garis.
Abra o peito na direção dos canhões
derrube os muros de Berlim
destrua as catedrais de Paris.
Defenda sua palavra
a vida não vale nada
se você não tem uma boa história
pra contar.

                                      de Poemas para flauta e vértebra


ONDE TUDO COMEÇA

Tudo começa no sexo
pensa o flácido pervertido.
O profeta contesta:
tudo começa na testa dos sábios
entre memórias de sabão e assombros.
O marinheiro dá de ombros.
Seu tudo começa
quando o barco se esfumaça
na neblina
deixando no porto
apenas pobres rimas
sem solução.
Onde tudo começa?,
pergunta a noiva impaciente
ao esquivo poeta:
no branco ou no preto,
em que letra do alfabeto?
O astronauta procura nas estrelas;
a musa, na maré triste.
Eu, que amo as manhãs
sem compreende-las,
creio que tudo começa
onde nada existe.

                     de O Arquivista


EU NÃO DEVIA TER VOLTADO AQUI

Eu não devia ter voltado aqui
Nem o velho caseiro me reconhece mais
Até o frio da noite
cúmplice de outrora
agora zomba da minha cara
chicoteia a minha alma
até sangrar.
Porque tudo tem que terminar assim,
frio e seco como essa paisagem?

Ainda há no ar, amor, o aroma dos nossos corpos
renascendo renitente como o capim.
Estou falando de coisas velhas, tristes e mortas.
Eu não devia ter atravessado aquela porta,
mil séculos atrás

                                      de Livro dos Camaleões


CABARÉ

Adentro o cabaré segurando a mulher pela cabeleira.
Sei que ela gosta assim, quando perco a estribeira
e a noite é nossa casa, alcova, cova rasa.
Peço uísque puro, ela martini, os olhos em brasa.
Há tantas portas na noite,
donzelas travestidas de putas
transviados brincando de boneca
e aquela aeromoça alta, distante,
dançando sozinha, frenética...
O que terá tomado?
Coragem, curare, urucum, urucubaca?
Aspiro o ar puro das beócias e escravas
que oferecem aos marinheiros insalubres
salutares promessas de rios
e lavas de amor.
Adoro a mistura de perfume e suor,
a sofreguidão dos musculosos corpos
nestes inescrupulosos mares;
senhoras ansiosas como adolescentes,
sozinhas e aos pares,
ondas humanas balouçando loucamente
no convés do baile.
Canto em louvor aos lábios quentes
ao improviso dos movimentos
ao vento violento
que arrasta os convivas para o calor da festa.
A vocês, que fazem piruetas na pista
sem merecer rugas na testa,
e a vocês, náufragos que vagueiam na maré como turistas,
aos espíritos submersos dos artistas, a vocês, eu dedico estes versos.

                                      de Amor e seus múltiplos


MANIFESTO VULGAR

Me chamam Baby the Billy!
O CANALHA
O CONQUISTADOR BARATO
O DESAGREGADOR DE LARES
A OVELHA NEGRA
O ANJO DECAÍDO.
Nasci numa manjedoura,
filho de mãe loura e pai negro.
Lembro que um cachorro lambeu minha cara,
o que acabou se tornando rotina durante a minha carreira artística.
No céu, uma chuva de estrelas anunciava o meu nascimento em letras gigantescas:
“BABY THE BILLY! BABY THE BILLY!”
Soube de mulheres que mal podiam me esperar crescer,
e se masturbavam furiosamente,
quando iam me ver.
Eu tinha tudo pra dar certo,
mas Deus, o velho corsário, não quis assim.
Fez de mim poeta, para sofrer e ser discriminado pelos semelhantes.
Por isso me chamam de canalha, os homens de má fé.
Por isso, escrevo poemas de amor
à mulher

                                      de Livro dos Camaleões


MEUS FILHOS

Ah, meus filhos,
Quantas noites insones
Só para vê-los acordar, todo dia
De cara lavada para a vida,
Se lixando para o índice Dow Jones,
Se a doença do século se chama Aids ou Sida.
Vocês só querem saber de comida na hora da fome
De bebida quando têm sede
De banho quando sentem calor.
Que mané descanso, se há um mundo por dispor?
E quem disse que têm medo?
(Só de ganso, assombração e do moleque fortão que mora na esquina).
É brincando que vocês extravasam sua porção assassina.
São cruéis com os insetos e curiosos com os outros animais.
Déspotas, desorganizados, insurgentes,
escovar os dentes, tomar remédio, é uma luta de titãs!
Meus filhos, meus heróis...
São noites insones, mas não são noites vãs...
E quando vocês forem fortes como uma tora
E os dedos das mãos tocarem os céus,
E seus lábios encontrarem outros lábios
Entenderão de outro modo o que agora
Já sabem mais do que os sábios.

                                    de Ver o Verso - em mãos


MUDAS
                para Sofia de Melo Breyner

"Como o tempo nos muda"
comenta a velha senhora, velha poetisa,
mirando a foto antiga na orelha da obra.
Estação após estação
ela amou o viço das cores, o sabor das rosas,
a graça dos movimentos, o passar dos rios,
as nuvens douradas tangidas pelo vento.
Ano a ano alimentou-se de lírios e livros
e amores poucos, porém intensos.
O sol já não banha sua face com a juventude da brisa
a mão erra pelas páginas, tocando paisagens mudas
as letras tornaram-se miúdas,
os amores se foram,
os sonhos se incorporaram ao céu azul-negrume.
Somos só perfume.
As estações despertam sem pressa
nascem todas por igual
na muda do tempo que não muda
sob terra e cal.

                            de Escreva sua história


MINHAS MÃOS

Sei que te bastam minhas mãos.
Para arar a terra em que plantas,
para consertar a cerca onde cantas,
toda tarde, ao som dos alaúdes.
E quem toca tuas virtudes?
São minhas mãos que amaciam tuas carnes,
que percorrem teu corpo à procura dos diábolos.
São elas que cortam a realidade em rodelas
para que possas digerir sem obstáculos
os obscuros duros dias.
Sei que te bastam minhas mãos.
Nelas podes ler as linhas do destino
mover as estações do ano,
alinhavar em língua de espanto
a vertigem das manhãs.
Minhas mãos, poderosas mãos,
tão grandes que tocam as nuvens,
tão fortes que calam os lábios
tão ligeiras que podem tudo.
Tão delicadas, e tão rudes.
Minhas mãos, escravas mãos,
de tuas vontades e virtudes.

                                    de Ver o Verso - em mãos

SEI

Sei que em alguma cidade deste planeta em ruínas
uma pequena me ama de verdade.
Posso sentir seu bafo no meu cangote
quando saio pra tomar um trago.
Sei
que num puteiro perdido qualquer
uma mulher se embriaga por minha causa.
Posso ver seus olhos brilhando de bebedeira,
nos faróis dos automóveis.
Nós bebemos tanto
porque estamos distantes um do outro
nessa geografia dos instintos.
Mas ela sabe o que eu sinto,
eu sei o que ela sente,
e assim nos amamos desesperadamente
dia após dia.
O resto é poesia.
Foda-se!

                                      de Livro dos Camaleões


QUERO-QUERO

Quero quero porque quero
Lero lero lar calor
Quero quero porque quero
Te chamar de meu amor

Para isso te paquero
Paro espero impaciente
Poderia como Nero
Tocar fogo no ambiente

Quero quero porque quero
Um bolero sem bolor
Mas não quero nada quero
Se não for mor mui amor

                                      de Amor e seus múltiplos


POESIA NÃO DÁ CAMISA

Se todas as mulheres do mundo
Tivessem um terço do teu perfume
Deus morreria de ciúmes dos homens
Porque aí não haveria mais eternidade, paraíso,
Essas paisagens do amanhã.
Existiria apenas o teu sorriso de hortelã
Refrescando a minha boca
Encharcada de saliva.
Poesia não dá camisa
Mas o poeta
Quando tem uma musa
Não precisa de blusa
Vive de brisa.

                                      de Livro dos Camaleões


A ONDA É UMA MULHER?

A onda é uma mulher azul que mora na lua
e manda seus cabelos beijarem meu rosto
ao primeiro mergulho.
Ela não deixa marcas ou traços,
apenas espuma.
Às vezes a onda-mulher me joga para o alto,
indefeso como pluma;
outras vezes desfalece em meus braços,
como suspiro em coma...
Mulheres!
Feliz do homem que pode entrar e sair das ondas
sem manchar o coração
na cor estanha dos mares súbitos.
A onda é uma mulher insana
arrasta seus amantes na maré baixa
com promessas de novos horizontes.
Em alto mar, sem destino ou fonte,
a onda vai – mas logo outra vem.
Ela não é minha, não é sua,
não pertence a ninguém.
Triste do homem que ama as ondas
Acaba no fundo de um mar de sonhos
com um gosto de mármore
na boca cheia de mariscos.
           
                         de Poemas para flauta e vértebra


LEILÃO DE CORAÇÃO

Seu coração vai a leilão
Nesta segunda-feira
Pego o lápis e o violão
Já estou na primeira fila.
- Quem dá mais?, apregoa o leiloeiro
fazendo voz de trovão.
O fazendeiro oferece hectares
O financista, um bilhão,
O armador, os sete mares,
O playboy, dissipação.
Levantam-se de todos os lugares
As vozes graves do pregão:
“Quem dá mais?” “Quem dá mais?”
- Dou minhas naves!,
diz o piloto de aviação.
- Dou meus lares!,
rebate o corretor de imóveis.
Ambos sacodem as chaves
ao plenário do salão.
Ela sorri para todos os pares
Aquele sorriso de graça
À espera da melhor proposta.
- Que se faça a última aposta!,
bate o martelo o leiloeiro,
reboando a questão além de bares e loterias.
Chega mais gente ao portão
Querendo saber detalhes
Daquele inusitado leilão.
Eu, que vivo de ares,
Faço as contas, aos milhares,
E arremato, num bordão:
Quantos poemas, quantas cantadas,
Valem seu coração?

                                      de Amor e seus múltiplos


EU DEFENDEREI O AMOR ATÉ O FIM

Eu defenderei o amor até o fim
Serei uma muralha de músculos
contra as hordas assassinas
Os senhores da alma
tentarão comprar a minha
Mas eles podem apontar cem mil canhões contra o meu peito
nada feito:
Eu defenderei o amor até o fim
Pegarei em armas
combaterei com meus versos
até nos confins do universo sem fim
Ficarei rouco
perderei para sempre a minha voz
mas um milhão de sóis falarão por mim.
E mesmo que os deuses me abandonem
mesmo com o coração corroído por uma paixão cupim
mesmo assim, eu defenderei o amor até o fim

                                      de Livro dos Camaleões

AUM

Aum
medita o monge budista, lá longe, no Himalaia
Aum
resmunga o porteiro do prédio, se lhe pedem algum favor
Aum
concorda o puxa-saco, com gente da sua laia
Aum
suspira o casal, no casulo do amor
Aum
arrota o glutão, sujo de macarrão
Aum
escreve o poeta, no coração das nuvens
Aum
critica o crítico, sem entender pícolos

                                    de Ver o Verso - em mãos


TARDE DEMAIS

Um dia descobrirás que me amas
e talvez seja tarde demais.
Rolarás por várias camas
enrolada em lençóis anônimos
abraçada a quimeras
o coração aflito na multidão de estrelas.
Ao percorrer os corredores da saudade
recordarás a ginástica de pernas e lábios,
perguntarás o que foi feito das rimas e hipérboles
e como as doces metáforas se transformaram em amargas paródias.
E não haverá ninguém para te dar as respostas.
Eu terei morrido mil vezes,
inutilmente, sob intensos temporais,
terei chorado um oceano de lágrimas, em silêncio,
buscando sustento na esgrima das palavras.
Um dia o vento irá soprar no teu ouvido
aquilo que nunca será lido
nas enciclopédias ou nos jornais.
Descobrirás que ainda me amas
e talvez seja tarde demais.

                                    de Ver o Verso - em mãos


AMOR É DOENÇA

Amor é doença
dança
crença
mudança.
Quando você menos pensa
já está dançado
levado como criança
num rodopio
de redemoinho.
E mesmo cansado se lança,
febril e fabril,
faz do outro usina e ninho.

Amor é esperança
experiência
aliança.
Resiste a qualquer sentença,
ameaça ou penitência,
à idade que avança,
à recompensa
de grilhões e chibata.
Não há dor
que o amor não vença
apenas a indiferença
o mata.

                                      de Amor e seus múltiplos


O DONO DO TEMPO

Vejo beleza em tudo que vejo
porque sou poeta
e me alimento do que é belo.
Ante meus olhos
baleias viram sereias
sirenes tocam sinos
tenho a alma de um menino
que ainda está para nascer.
Sou o dono do meu tempo
mas de repente vem um vento e eeeeê...

Vejo beleza nos casais que se amaram para sempre
e porque não, vejo beleza nos amantes de ocasião,
verão vermelho na eternidade cinza.
Vejo beleza na flor e no espinho
na água e no vinho
na derrota e na vitória.
Vejo beleza na Marina e na Glória, de mãos dadas ao entardecer.
Sou o dono do meu tempo
mas de repente vem um vento e eeeeê...

Vejo beleza nas ruas secundárias,
mais do que nas avenidas principais.
Vejo beleza nos velhos caminhando nas praças
nas meninas comendo pizza nos shoppings
até no motorista que avança os sinais
enquanto os pedestres passam apressados
prestes a enlouquecer.
Sou o dono do meu tempo
mas de repente vem um vento e eeeeê...

Vejo beleza no mínimo e no máximo
no desperdício e no básico
no popular e no clássico
na música e no barulho
no vício e na virtude.
Vejo beleza até quando não vejo
quando beleza é só o desejo de ver.
Sou o dono do meu tempo
mas de repente vem um vento e eeeeê...

                                    de Ver o Verso - em mãos

A GRAVIDEZ DAS PALAVRAS

As palavras estão grávidas
de dúvidas
rimas ricas e pobres
metáforas ávidas

As palavras estão grávidas
de desejo
pálidas de medo
cálidas, crisálidas

As palavras estão descontroladas
em gestação
na mudez aparente
de semente, dente, grão

As palavras nascem com asas
de silêncio
é preciso arrancá-las
ao coração

                                    de Escreva sua história